domingo, 11 de agosto de 2019

Dois filhos

     Tenho dois filhos. A mais velha, Ilusão, e o mais novo, Trauma. Ilusão geralmente, não agi errado, mas erra... É como se me trouxesse flores, mas que arrancou do meu próprio jardim. A intenção de suas ações são boas, mas às vezes saem errado. Ela não erra sempre, mas quando erra, geralmente dói.
     Trauma apronta... Trauma gosta de me fazer acordar de noite, de dormir pouco, de me fazer comer muito ou então não ter fome, trauma as vezes me faz louca... Trauma mente horrores! E é difícil as vezes saber quando é real ou não...Trauma as vezes mente para não ficar de castigo, para não ter que fazer algumas coisas, Trauma as vezes me manipula.
     Ilusão já não mente... Ela acredita cegamente na bobagem que está contando. Ela apaga detalhes que não vão acrescentar na história que está criando dentro de sua cabeça, ela omite as partes feias, realça as partes que a agradam, mas não é menos pior que as mentiras de Trauma.
     Eles até podem tentar me controlar, mas também eu mando neles, seguro seus braços para não correrem muito a frente de mim, brigo com eles para que me obedeçam, converso e discuto para que entendam. Afinal, são crianças, frutos da minha mente e história. São crianças e é parte do meu papel fazê-las amadurecerem. Elas não são de todo ruins. Ilusão me faz imensamente alegre com sua forma doce e delicada de ver a bondade no mundo, ela me anima quando as coisas parecem sem futuro e ela sempre acha uma forma de encontrar propósito para mim. Trauma me avisa sobre tudo que ocorre de diferente, ele está sempre alerta, sempre atento, ele me ajuda a tomar cuidado, a não repetir padrões e a não errar mais de uma vez com uma mesma coisa, por mais estranho que pareça, Trauma cuida de mim.
     Ilusão cuida de mim.
     São meus filhotes no final das contas. Aprendi e aprendo todos os dias a lidar com eles. Não é fácil, as vezes é uma luta, mas não muda que eles são meus.

sábado, 28 de maio de 2016

Medicina

A medicina parece, como grande parte dos desejos, uma dádiva e uma maldição. O preço por ela sempre é alto. Não acho que o grande problema seja que ele exige muito, acho que é necessário exigir para que as pessoas cresçam e se tornem responsáveis em alguns momentos, mas é desmedida a exigência que nos é imposta. Quantas vezes não vi colegas virando a noite para entregar trabalhos? Quantas provas não fiz eu também depois de seguidas noites mal dormidas? Quantas vezes deixamos de lado nossa vida, necessidades, vontades, amigos, família?
Junto com a exigência há também a banalização de nossa doação... Quem não virá a noite estudando, não é dedicado o bastante. Quem entra em depressão no curso é fraco. Quem não se adequar ao que é exigido pela universidade não serve. Lentamente a gente vai achando que é normal deixar todas as coisas para fazer medicina. Meus amigos constantemente me falam que pensam em desistir, que sentem falta de fazer determinada atividade, que estão cansados... Colocamos todos os dias nós mesmos depois da medicina, engraçado pensar que quando finalmente terminarmos o curso, 'doutor' também sempre vem antes do nosso nome, como se ser médico vem antes de quem somos.
Triste e contraditoriamente, escolhemos a medicina justamente por sermos quem somos, e por isso, pagar com nossa individualidade também significa perder o motivo de estarmos no curso, correr o risco de ser um médico medíocre porque a medicina consumiu tanto de nós que não há mais o desejo e a paixão por exercê-la.
Ainda assim, é muito difícil largá-la, não só pela dificuldade de ter entrado, não só pelos muitos anos de planos, não só pela ideia de futuro que ela traz, mas porque ela constitui para muitos um sonho... São uns poucos que largam matérias e tornam-se parias dentro da universidade, menos ainda aqueles que, tendo entrado em medicina, conseguem abandonar o curso e começar algo novo. Às vezes a gente acha que não dá para começar tudo de novo, mais ainda, a gente não sabe como começar mais uma vez depois de tanto tempo pensando justamente que a gente ia ser feliz na medicina.
Há em 'a insustentável leveza do ser' uma parte cujo sentido é que: 'as vezes decidimos algo, que nem sabemos porque decidimos, mas que mantemos e cada ano fica mais e mais difícil mudar por causa da inércia'. A gente vai ficando para ver se melhora, e vai se acostumando com as dores, naturalizando nossas doações, acreditando que as exigências que nos fazem são devidas, vai se acostumando a não voltar para casa, a acordar cedo e dormir tarde, a sempre estar atrasado com a matéria e sempre saber menos do que é devido. Quanto mais o tempo passa, mais difícil é fugir. Perguntei a colegas se melhora com o tempo, eles me dizem que sim, mas tenho pensado que na realidade a gente apenas se acostumou. É triste pensar que nos acostumamos com a situação, que é tão pouco saudável e justa, talvez sobreviver esteja realmente acima das coisas. Sobrevivemos na medicina acima de tudo, mas viver é uma arte da qual esquecemos completamente.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Aeternus

Escrevi eterno em seus olhos enquanto você dormia. Você falava sobre um mundo que eu achava que era para ser meu também. Segurava minha mão com força como se não pudesse ir a outro lugar sem ela. Eu mexia no teu rosto com cuidado...
            Foi com fita e laços que eu fechei teus cortes, e com beijos curei tuas dores. Eu velei sobre suas dúvidas a noite, e me fiz presente o tempo todo mesmo longe.
            E era eterno meus dias
            E eterno seria
            Se não fossem só os meus olhos a ver a eternidade que os teus parecem ter...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Júlia

Júlia, não fala com estranhos
Júlia, não pensa nessas coisas, por favor...
Júlia, você me preocupa
Júlia, você só me dá trabalho
Júlia, não chora... por favor, Júlia, não chora
Júlia, tu não existe
Júlia, você tá bem?
Júlia, você me parece meio triste
Júlia, corta o doce
Nossa, Júlia, não viaja
Júlia, não foge, você não pode fugir
Júlia, eu te adoro
Júlia, isso não é solução
Júlia, não me faz surtar, por favor
Júlia, eu te amo

Udi

            Udi é uma impressão que dorme dentro dos meus olhos.
            Que, durante a noite, vem e deita-se em minha retina. Que se enrola nos capilares. Que, num movimento descontraído e sem sentido de uma criança dormindo, às vezes repuxa um ou outro nervo, joga meus olhos para cima, para baixo, para os lados...
            Ela sonha dentro dos meus olhos que sonham. Mas nossas ideias são diferentes... Nossos mundos e nossas dores. Ela às vezes enquanto eu durmo me sussurra algumas coisas, que escorrem como elefantes de Dali para dentro de meus sonhos. Às vezes ela chora dentro dos meus olhos, e eu choro sem entender o porquê.
            Mas nem sempre está em minha retina. Durante as noites, quando estou num estado de vigília, entre o sonho e o cotidiano, eu a escuto correr pela sala, pular no sofá, flutuar por instantes – sem peso nenhum –, escuto seu riso que reverbera como um sopro pela casa e sei de sua presença porque sou invadida por uma satisfação simples por estar viva. Sua presença não é temível, embora ela seja algo próximo a um fantasma. Eu quase sempre penso em me levantar e ir com ela andando pelos cômodos, de correr a casa como se ela fosse nova. Sempre penso e sempre durmo.
            Durante a noite Udi vem e puxa minhas pálpebras para cima, cuidadosamente entra por minha pupila e se deita lá no fundo. Lá ela se acalma, como minha menina dos olhos. Junto de algumas estrelas que tenho flutuando no líquido ocular, para que quando as pessoas olhem para mim, eles brilhem cuidadosamente em resposta, Udi repousa. É lá dentro que ela fica guardada...
            Udi era mais real antes. Porque antes ela era parte de minha realidade, e ocupava o espaço que hoje sou eu que ocupo. Nessa época eu não existia. Num outro futuro eu não existirei e pode ser que dividamos os mesmos olhos que uma vez foram nossos, mas que passamos somente a habitar.
 Mas hoje, ela é uma impressão. Irreal. Hoje ela é só mais uma parte de um tempo passado.
O cheiro de panos tingidos no varal, o ipê em frente a nossa antiga casa, os tijolos dessa casa, o estranho jardim de inverno, as balas Valda dentro da bolsa de minha mãe, o pinheiro de Natal enfeitado e secando lentamente na sala, as estantes do escritório cheio de livros que eu não entendia, o quarto com a faixa de ursos, o tapete rosa estendido no quintal, os brinquedos jogados ao meu redor, os panos com os quais eu me fantasiava de cigana, o piano silencioso na sala. Tudo isso passou. É incrível pensar que todas essas coisas estão acabadas...
Há uma tristeza e felicidade imensas quando concluo isso.
Eu mal espero para poder deitar também no fundo dos meus olhos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Péssima literatura

            Nós seriamos a pior literatura que já existiu. Você me disse numa dessas noites... Numa quarta ou terça, assim, despropositadamente, como se estivesse jogando algo que sempre soube, mas que até então não tivesse encontrado oportunidade para falar e decidiu, de uma hora para a outra, simplesmente jogar essa informação no ar.
            Nós seriamos a pior literatura? Mesmo? Eu havia perguntado. E você apenas assentiu.
            Hoje, também despropositadamente, eu meio que compreendo o que você quer dizer...
            Porque ontem fomos ao cinema, andando de mãos dadas e compramos duas entradas. Você quis pipoca, eu estava com vontade de goma, pegamos duas garrafas de água. E a gente entrou para assistir o filme. Assim simples, assim quieto, assim sem mais nem menos.
Porque duas semanas atrás a gente foi ver uma exposição que eu estava louca para ver! Mas que você achou tediosa, e enquanto eu discorria a respeito dos quadros para não te deixar de fora, olhando as cores e as formas das composições (coisa chata de artista, eu sei) você ficou a olhar meu rosto, ouvir as coisas bobas que eu falava, se divertindo em com elas me encantavam. Mas, quando se tornou tedioso demais você pediu-me para encontrá-lo no café ali perto, e eu concordei sem maiores problemas, tirando seu livro de minha bolsa (andamos sempre os dois carregando livros).
Porque, quando a copa estava acontecendo você me convidava para ir ver os jogos com você e eu ia, mas entediava-me terrivelmente com os jogos (eu nunca consegui realmente assistir futebol), mas eu podia ficar sentada ao seu lado com uma prancheta e desenhar. Revezávamos as vezes em que cada um ia à cozinha. Chá para mim e uma cerveja para você.
Seriamos uma literatura horrível porque estamos habituados demais um ao outro... Faltam-nos vilões que não sejam contas, e faltam intrigas que não sejam quem comeu o que da geladeira ou onde determinada roupa foi guardada, faltam discussões sérias, porque as nossas são sobre quem vai levar o lixo para fora hoje ou lavar a louça, falta a polêmica, a frustração e a dor...
Como poderíamos ser uma boa literatura?
Nossas famílias não nos impediram de ficarmos juntos, Romeo. E o orgulho e preconceito nossos já se foram, então não podemos ser mais como Darcy e Elizabeth, também não nos cabe qualquer uma das outras heroínas e outros heróis de Jane Austen. Eu ocupo o lugar da Dora, de Jorge Amado, mas que não morreu. Você pesa no meu coração tanto quanto Minsk, de Graciliano Ramos, mas sem nunca ter se machucado. Nossa história nunca terminaria como ‘por isso que a gente acabou’, porque a gente simplesmente não acaba...
Somos como a ideia de uma Beatriz e Virgílio de Yann Martel, mas vivos e longe do cárcere. Eu sou sua Sabina que não fugiu e você o meu Franz que dessa vez compreendeu, em a ‘Insustentável leveza do ser’... Ou seriamos mesmo os outros personagens, Thomas e Tereza, já sem o ciúmes e as traições? Talvez sejamos dois Karenins apenas...
Assim, como poderíamos ser tão polêmicos quando ‘Lolita’? Ou tão descontínuos quando Carmem, em ‘O corpo presente’? Angustiados como ‘Dom casmurro’? Como ocupar os lugares de João de Lucena e Solange, de Lídia Jorge, se permanecemos juntos? Como? Se ‘De todos os fogos o fogo’ de Cortazar eu não deixei você duelar. Se nós somos o princípio do final feliz de ‘o morro dos ventos uivantes’? Como ser sua Charlote se eu e você estamos juntos, Werther? Haveria espaço para sofrimentos nessa história?
Como somos chatos... É verdade... 
Sequer somos clichês! Porque para ser clichê precisaríamos de uns dramas, você poderia estar doente, a gente poderia se separar por uns tempos, eu poderia estar comprometida...
Nossa história se passa depois dos dramas e das dores, sem as abandonarem, claro, mas agora tornando-as mundanas e simples, cotidianos e não mais desesperos inimaginavelmente intransponíveis...
Seria chato demais lerem-nos! Por sorte ninguém o faz, e a gente vai vivendo assim simples, como uma péssima literatura... Que conta a história que ninguém quer saber, do que acontece no ‘e eles foram felizes para sempre’.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Hannah

            Ontem a noite eu sonhei com você de novo. Vestia um casaquinho azul claro. Você era muito jovem e pequena ainda.
            Sonhei muitas coisas, mas o que importa mesmo foi a parte em que você me apareceu no sonho, distante, com seu casaquinho, estava bem ao lado do portão do fundo de nossa antiga casa. A casa que eu tanto amo, mas que ficou para trás...
            Eu lembro que chovia sem pausa.
            Na cozinha eu escutei o portão se abrir. Foi o bastante para me fazer correr, eu não sabia onde você estava, mas ao ouvir o portão, eu sabia que você já estava lá, que já podia estar lá. Isso era perigoso.
            Eu escolhi teu nome... Hannah, como no quadro de hiper-realismo que vi na quinta série. Uma menina segurando um pequeno cachorro no colo. Nenhum dos que eu dei o nome escapou das artes, você veio de um quadro, Mei veio de um filme, Faber veio de um livro. Talvez seja minha pequena forma de dar algo para todos vocês que eu sei que tenho no coração. Arte.
            Eu vi você parada ao lado do portão. Quando ele se abriu, você correu para fora, pequena e desajeitada, com seus joelhos tortos como os meus. Eu gritei para alguém segurá-la, mas a chuva abafou meus gritos, e você ia, atravessava a rua movimentada. Eu gritava em vão.
            Estranho imaginar que sonhei com você tão jovem, quando, na verdade, você morreu a pouco tempo de velhice. Também dessa vez eu estava longe. Essa primeira vez que te perdi, fui saber apenas ao telefone, contada duas vezes para mim, chorada algumas vezes durante os últimos tempos, relembrada em silêncio como mais um de meus erros de ausência...
            Você passou a rua, em meu sonho, e foi andando. Eu não conseguia chamá-la, ninguém escutava meus gritos. Parecia que meus pés eram lentos demais. Parecia que você estava sempre distante de meu alcance... Eu, muito longe...
            Um senhor, no entanto, apareceu ao teu lado e te levou no colo. Você me pareceu doce e despreocupada no colo dele. Ele andou em minha direção, e estendeu você para mim. Lembro-me de afundar meu rosto em ti, de chorar, de pensar que estava tudo bem... Você ainda estava ali. O senhor me disse para ter cuidado. Que era fácil perder alguém assim... Mas você estava ali, e eu afundava meu rosto em teu casaco e chorava.
            Mas quando eu acordei, não estava. A quentura de teu corpo fora uma das ilusões...
            Acordei as 3h e tanto da manhã. Todos os relógios haviam parado. Uma chuva leve começava lá fora. Eu chorava. A tua ausência era enorme.

Todas as ausências são enormes... 
E eu estou longe demais.